O dia 26 de setembro de 2014 já está
gravado na história do México como símbolo da dura realidade em que vive seu
povo atualmente, tal como o massacre de Tlatelolco em 1968 – lembrado a cada
ano nas manifestações de 26 de outubro – simboliza o início de um período de
repressão aos movimentos populares da década de 1970.
O massacre
dos estudantes de Ayotzinapa não é apenas a demonstração do poder do
narcotráfico e de seus vínculos com os partidos da ordem, mas a expressão do
terrorismo de Estado mexicano em pleno funcionamento, onde as vozes
dissidentes são caladas com mortes, torturas e desaparecimentos.
O massacre de Iguala
Naquele 26
de setembro, em Iguala, uma pequena cidade do estado de Guerrero, estudantes
da Escuela Rural Normal de Ayotzinapa regressavam de um boteo,
atividade de arrecadação de fundos, com o objetivo de financiar seu traslado
à Cidade do México para a manifestação de 2 de outubro, em memória ao massacre
de Tlatelolco.
Após o fim
da atividade, como de praxe, haviam conversado com motoristas de ônibus para
que os levassem de graça de volta à sua escola, que fica na Zona Rural.
No momento
em que saíam da cidade em três ônibus, por volta das 20h30, efetivos da
polícia municipal lhes fecharam o caminho. Dois estudantes desceram do primeiro
ônibus para tentar conversar e explicar a situação. Foram baleados tão logo
apareceram na mira dos policiais.
Iniciou-se,
então, um ataque de meia hora aos ônibus em que os estudantes, todos
desarmados, tentavam se proteger dentro do que pouco a pouco se convertia em
uma peneira, tantos eram os buracos causados pelas balas dos fuzis AR-15 dos
policiais.
Percebendo
que dentro daquele espaço não teriam chances de sobreviver, decidiram sair dos
ônibus e correr em qualquer direção, pelas ruas de uma cidade que sequer
conheciam. Aproveitaram o momento em que os policiais recarregavam suas
armas.
Enquanto
estudantes dos dois primeiros ônibus corriam para salvar suas vidas, os que
vinham no terceiro, por último, foram obrigados pelos policiais a descer do
ônibus e a subir nas caminhonetes oficiais. Foram levados não se sabe pra
onde. Estão até este momento desaparecidos.
Algumas
horas depois do ataque dos policiais, os estudantes começam a sair das casas
onde tinham sido escondidos solidariamente pela população de Iguala. Caminham
até o local do ataque para resgatar os corpos de seus companheiros e registrar
os rastros de balas e de sangue. Convocam outras organizações e chamam meios
de comunicação.
Após a
coletiva de imprensa – em que dão a conhecer os fatos ocorridos, o número de
feridos, mortos e desaparecidos –, caminhonetes com civis armados chegam ao
local, por volta da 00h30 madrugada, já do dia 27, e iniciam o segundo ataque.
Novamente,
cada estudante buscou desesperadamente se esconder pela cidade, dando início a
uma caça a “qualquer um que parecesse estudante” que durou várias horas
daquela madrugada.
Dos dois
ataques resultaram seis mortos – um dos quais brutalmente torturado: lhe
arrancaram os olhos e a pele da face ainda em vida –, cerca de 20 feridos e 43
estudantes desaparecidos.
Crime de Estado
O relato
desse episódio brutal não saiu de nenhum jornal sensacionalista, mas da boca
dos próprios estudantes sobreviventes. Suas vozes de denúncia se espalharam
por todo o país e correram o mundo. Uma mescla de raiva e impotência toma
conta dos mexicanos nestes dias posteriores ao massacre.
O
sentimento, no entanto, não é “contra o poder e a impunidade do narcotráfico,
que penetra em todos os poros da política mexicana”, tal como replicam os
grandes meios de comunicação. Não, o que o ocorre no México é algo pior: é o
funcionamento pleno de um Estado terrorista que se utiliza de métodos legais e
ilegais – nos quais o narcotráfico é apenas mais um “sócio” – com igual naturalidade
para reprimir qualquer voz questionadora do povo organizado e semear o medo na
população ainda desorganizada, para que saibam dos riscos de questionar o
modelo econômico e político vigente no país.
José Luís Albarca, o prefeito de Iguala, é acusado de ordenar a repressão policial ao protesto dos estudantes |
É nesse
sentido que o massacre dos estudantes de Iguala não pode ser entendido como um
fato isolado, mas como um crime de Estado, expressão de uma guerra de
contra-insurgência de caráter preventivo, cujo objetivo é garantir o
funcionamento de um modelo de exploração do povo e do território mexicano sem
paralelo na história moderna do país.
Noite neoliberal
Os ventos
de transformação que varreram a América Latina nos últimos 20 anos não sopraram
por aqui. As classes dominantes e o imperialismo gringo trataram de
impedi-lo. As tentativas eleitorais do candidato mais à esquerda, Andrés
Manuel Lopez Obrador, foram bloqueadas por duas fraudes, em 2006 e 2012, e as
organizações populares mais radicais foram duramente reprimidas – como a APPO
e a Asamblea Popular de los Pueblos de Oaxaca, em 2006 – ou se encontram sob
duro cerco, a exemplo do EZLN.
O México,
portanto, está longe de ser “um país zapatista” e a luta de Pancho Villa e
Emiliano Zapata há muito não guia a construção desta nação. A “longa noite
neoliberal” segue plena e o amanhecer ainda não aponta no horizonte.
Enquanto,
em 1994, Chávez saía da prisão para ganhar as eleições venezuelanas três anos
depois, o México, no mesmo ano, assinava o Nafta, Tratado de Livre Comércio da
América do Norte.
Antes, em
1988, outra fraude eleitoral impediu a eleição de Cuauhtémoc Cárdenas, filho
de Lázaro Cárdenas, e deu a presidência a Carlos Salinas de Gortari,
considerado por muitos como o primeiro presidente neoliberal do país.
Desde
então, pôs-se em marcha um projeto de subordinação completa aos interesses do
imperialismo estadunidense, que se concretiza na assinatura do Nafta, com a
participação das classes dominantes, políticos de alto escalão, sindicatos
vinculados ao Estado, alguns setores empresariais beneficiados pelas políticas
de privatização e, claro, os empresários do narcotráfico.
Podemos
resumir o projeto neoliberal mexicano que se inicia naquele momento em torno
de três eixos: a intensificação da superexploração dos trabalhadores por
parte do capital estrangeiro, associado com a generalização das indústrias
maquiladoras; o despojo territorial das comunidades camponesas e indígenas
para exploração de recursos naturais; e a privatização de um patrimônio
estatal nada desprezível construído durante os governos nacionalistas.
O
narcotráfico, neste esquema, não é um setor à margem da economia, mas participa
dela tanto na produção – e portanto na exploração dos trabalhadores, inclusive
em setores como a mineração – como no despojo das comunidades para a produção
de drogas ou para abrir passo à entrada de empresas estrangeiras. Sem falar na
“economia formal” que esse setor movimenta por meio da lavagem de dinheiro na
construção civil, nos bancos etc.
Seja como
for, o projeto neoliberal dilacerou o país nos últimos 20 anos. O México
ostenta atualmente salários menores que os praticados na China e um dos
menores da América Latina. O poder aquisitivo real do salario mínimo caiu 78%
desde 1987, segundo dados do Centro de Análise Multidisciplinar da Faculdade
de Economia da UNAM, e 60% dos trabalhadores está na informalidade.
As cifras
sobre a pobreza também assustam: 50% dos mexicanos estão abaixo da linha da
pobreza segundo a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe), número que tem crescido nos últimos anos (se reconhecermos os limites
dos critérios de medição da ONU, podemos afirmar que, na realidade, a pobreza
é ainda maior).
Poderíamos
seguir com a crise alimentar que conjuga os maiores índices mundiais de
obesidade adulta e infantil com a desnutrição crônica e faz do país o maior
importador mundial de milho – triste destino dos povos que criaram o milho, lãs
civilizaciones del maíz, e têm neste grão a base de sua alimentação
e cultura – ; com a violência contra mulheres e jovens gerada por tamanha decomposição
social; com a crise migratória mexicana e centro-americana...
“Pienso, luego me desaparecen”
Não é
difícil perceber que tamanha violação da vida das maiorias só poderia ter sido
imposta por meio da violência. Ainda mais no México, país onde a capacidade
combativa do povo remete à luta contra o invasor espanhol e ao projeto de
construção nacional, popular e democrática da Revolução Mexicana. E assim
ocorreu. A cada impugnação popular ao avanços do projeto neoliberal, repressão
e massacre.
Em 1995, o
massacre de Aguas Blancas, Guerrero. Em 1997, o massacre de Acteal, Chiapas.
Em 2006, o massacre de Atenco, Estado de México. Em 26 de setembro de 2014,
massacre de Iguala, Guerrero.
E, entre
esses massacres que circularam amplamente nos meios de comunicação por sua
dimensão, estão as mortes e os desaparecimentos silenciosos de milhares de
líderes comunitários, trabalhadores, estudantes, jornalistas ou, simplesmente,
de pessoas que levantam sua voz contra a opressão que sofriam cotidianamente.
A dimensão
da violência e a regularidade com que foi e segue sendo cometida não permite
afirmar que se tratam de fatos isolados, de abuso de poder das autoridades
policiais, prefeitos e governadores.
Pelo
contrário, há uma estratégia, pelo menos desde a década de 1980, que emana do
Palácio Presidencial e conta com a participação material e intelectual do
Departamento de Estado estadunidense, cujo objetivo é evitar a ascensão de
qualquer movimento que questione as bases da economia mexicana e o papel do
imperialismo dos Estados Unidos na região, ao mesmo tempo em que abre o país
para os investimentos estrangeiros e ao roubo dos recursos do país, tão
importantes para elevar a taxa de lucro dos monopólios internacionais em tempos
de crise capitalista mundial.
Pouco a
pouco, cada massacre tinha como complemento o aprofundamento da dependência e
do subdesenvolvimento do país. Foi assim que na década de 1990 se pôde
colocar em marcha o saqueio quase completo do patrimônio estatal mexicano:
privatizou-se praticamente todo o setor bancário, siderúrgico, químico, de
telecomunicações e de transportes.
A “guerra
contra o narcotráfico” iniciada em 2006 com Felipe Calderón e aplicada
cabalmente pelo atual presidente Enrique Peña Nieto é a culminação desta
estratégia – já bem conhecida na Colômbia – em que a repressão aberta, as
mortes, as torturas e os desaparecimentos são mecanismos habituais para
garantir a “paz social”, que neste caso não significa outra coisa que a
acumulação de capital sem travas.
Sob o
argumento de combater a “delinquência organizada” – que, na verdade, foi um
reordenamento de poder entre os principais cartéis, em favor daqueles
apoiados pelo governo –, somam-se nos últimos seis anos 80 mil mortes e 20 mil
desaparecimentos. Praticamente todos os crimes permanecem impunes. É por isso
que não podemos falar senão de um terrorismo de Estado que articula governos
federal, estaduais e municipais, as Forças Armadas, grupos paramilitares e
cartéis de drogas.
O mais
triste, porém, é reconhecer que o projeto das classes dominantes foi e segue
sendo bem-sucedido. Não se pode explicar a facilidade com que se aprovaram, em
2013, as Reformas Trabalhista e Educativa, nem como se aprovou a privatização
de todo setor energético – que envolve eletricidade, petróleo e gás – neste
ano, sem levar em consideração a eficácia da estratégia repressiva do Estado
mexicano sobre os movimentos e organizações populares na última década.
O massacre
dos estudantes rurais de Ayotzinapa não escapa a este panorama de violência
estatal conscientemente aplicada. Eles, como a maioria dos estudantes das
Escolas Normais Rurais do país, fazem parte dos que nunca se calaram frente ao
avanço do capital sobre os direitos do povo mexicano, dos que nunca se
curvaram aos poderosos.
As Escolas
Normais Rurais, criadas na década de 1920, na esteira das conquistas da
Revolução Mexicana pela universalização da educação, são um semillero histórico de lutadores sociais.
Da própria Normal Rural de Ayotzinapa surgiu Lucio Cabañas, um dos mais
destacados líderes guerrilheiros dos anos de 1970.
Aqueles
estudantes eram, pois, uma ameaça ao modelo econômico excludente que vigora no
país. Lutavam contra a precarização da educação rural, sabiam da importância
destas escolas como a única possibilidade de educação para a juventude mais
pobre do país. Como filhos de agricultores, eram também solidários e
marchavam juntos com os movimentos camponeses e indígenas de sua região contra
o despojo de suas terras. Por esses motivos foram, assim como milhares de
outros lutadores sociais, alvos do terrorismo de Estado mexicano.
A
participação direta da polícia municipal de Iguala juntamente com o grupo paramilitar
Guerreros Unidos está comprovada. O Exército e Marinha, que têm bases de
operação no município, e as policiais estaduais e federais, em nenhum momento
apareceram para proteger os estudantes. Foram coniventes com o crime.
O prefeito
de Iguala, do PRD, fugiu. O governador do Estado, também daquele partido, e o
presidente Peña Nieto, do PRI, afirmam que o ataque foi um ato isolado e sequer
responsabilizam seus altos mandos militares. Enfim, o povo sabe que todos são
culpados, que se trata de um crime de Estado. No entanto, há uma impressão
generalizada de que, uma vez mais, as investigações não levarão a lugar algum.
Ascensão das lutas populares?
O massacre
dos estudantes normalistas despertou imediatamente a solidariedade de todos
os movimentos e organizações da esquerda mexicana. No dia 8 de outubro, uma
manifestação de 20 mil pessoas lotou as ruas do centro de cidade do México, e
dezenas de atos ocorreram em outras cidades importantes do país exigindo a
punição dos culpados e a aparição com vida dos 43 estudantes desaparecidos.
A semana
do dia 13 de outubro esteve marcada pela paralização de 30 das maiores
universidades mexicanas e vários atos estão marcados para as próximas
semanas. A exigência imediata é o aparecimento com vida dos 43 estudantes
desaparecidos e a punição dos responsáveis materiais e intelectuais da matança.
“Vivos se los llevaron, vivos
los queremos”, gritam os mexicanos em todo país.
Mas em
espaços menores já se fala em aproveitar o momento para reconstruir a unidade
entre as organizações populares – tão numerosas quanto dispersas – e partir
para uma ofensiva contra o governo. Os principais disseminadores deste
discurso são os próprios companheiros de aula e familiares dos estudantes
desaparecidos. Eles sabem da importância de encontrá-los com vida, mas também
sabem que, se não avançarem na construção de outro projeto de país, outros
massacres seguirão ocorrendo impunemente.
No curto
prazo, porém, parece remota a possibilidade de uma nova ascensão de lutas populares generalizadas. Outras “explosões sociais” ocorrerão, certamente, devido à
própria natureza perversa do capitalismo dependente mexicano, mas a tarefa que
a conjuntura mexicana impõe à esquerda é uma das mais difíceis de todo o
continente e requer muito mais do que denúncias aos atos terroristas dos
governos em turno. Mesmo as resistências locais se mostraram incapazes de
impedir a privatização e o roubo dos recursos estratégicos do povo mexicano.
Só resta,
portanto, a saída mais difícil, porém a única efetiva: a construção de um
projeto nacional de maiorias que logre acumular força para combater as classes
dominantes – nas quais se inclui o narcotráfico – e bloquear a penetração do
imperialismo estadunidense, que faz de tudo para que México siga sendo seu
quintal.
O PRD,
partido que há alguns anos aparecia como alternativa, já está imerso no
projeto dominante e não será um aliado nesta tarefa. Tampouco o novo partido
criado por Andrés Manuel Lopez Obrador, o MORENA, aparenta uma saída pela esquerda,
dada sua fixação pela via eleitoral e seu desdém pelo trabalho de base. O povo
só tem a si mesmo – e só das suas mãos humildes pode nascer um projeto de otro
México posible. Que em suas veias volte a pulsar o sangue de Villa e
Zapata.
Fonte: Brasil de Fato