Demorou-se, olhando detidamente a
foto do seu casamento. Pensou em todos os momentos felizes que vivera com
aquela, que antes de ser sua esposa, havia sido sua primeira namorada. A emoção
do primeiro beijo, dos primeiros amassos escondidos, a inesquecível primeira
vez, tudo voltou à tona e trouxe o esboço de um sorriso ao seu rosto. Pensou em
como esses momentos eram significativos na vida, enquanto apanhava o retrato e
se dirigia à garagem. Pensou com carinho na beleza do seu rosto, na sua feição
sempre carinhosa mesmo quando parecia estar escondendo alguma preocupação. Suas
mãos, seu cabelo, seu jeito único e inconfundível de realizar as mais triviais
atividades, tudo o que o havia cativado e apaixonado e havia enfim, lhe
ensinado o significado do amor, borbulhava em sua mente naquela noite fria. Uma
saudade de tudo aquilo que tinha sido sua vida nos últimos anos, trazia a
certeza de que seu lugar era ao lado dela, sua amada, sua pequena, seu raio de
luz que ilumina e aquece.
Apanhou a pochete e entrou no carro, olhando
automaticamente para o banco do passageiro, que já tinha o seu cheiro e sua
forma. Quando abriu o portão da garagem, o vento frio noturno trouxe folhas
secas pra dentro de casa. Como no dia em que se conheceram e quando se beijaram
pela primeira vez, sob a sombra de uma frondosa castanheira num parque da cidade,
enquanto as folhas dançavam ao vento em seu redor, provavelmente maravilhadas
com a pureza do seu amor. Ligou o carro e saiu devagar, esquecendo de fechar o
portão e observando a rua vazia, sob os minúsculos pingos de uma chuva leve,
que caia suave como pequenos cristais sob a luz dos faróis. Quebrando a quietude
da hora, apenas o som das gotas, as luzes de uma viatura ao longe, em sua ronda
noturna e uma pancada oca de quem passou por cima de algo. Tomara que não seja
o gato da vizinha, pensou enquanto acelerava em direção aos braços quentes e
acolhedores que o esperavam. Sinto não poder parar mas o amor não pode esperar.
Já antecipando o momento do abraço, acelerava ainda mais em direção a represa e
deixava pra trás toda a bagunça da cidade, enquanto lembrava que ela sempre
insistia que deviam ter um sítio para passar os finais de semana. Sentiu uma
pontada de tristeza por não poder presenteá-la com a realização de todos os
seus desejos. Poderiam fazer filhos naquele sítio e observá-los crescer ao ar
livre. Acelerou um pouco mais.
A represa enfim despontou a sua
frente, fantástica a luz do luar. Enquanto se aproximava, lembrou com extrema
satisfação e exatidão, do dia mais feliz de sua vida, à borda daquela represa.
O dia em que ela, depois de três meses de namoro, baixou a guarda pela primeira
vez. O dia em que fizeram amor, pela primeira de tantas maravilhosas ocasiões,
louca e apaixonadamente durante quase toda a madrugada. Olhou novamente para o
banco do passageiro e não se envergonhou nenhum pouco, quando nitidamente teve
uma ereção com aquelas lembranças, enquanto parava o carro exatamente naquela
mesma posição, naquela mesma direção e com um luar tão lindo quanto o daquele
dia. Ela estava lá.
Já sorria excitado quando outra
pancada surda chamou sua atenção. Agora sabia que não era um gato e desceu do
carro carregando a pochete e pediu a ela que esperasse um instante, pois ia
pegar seu ursinho. Abriu a pochete e verificou seu conteúdo para se certificar
que tudo correria bem. Destravou o porta malas e o viu ali parado, com olhos
esbugalhados e uma mão luminosa, como um ser mágico e furtivo, cheio de
habilidades românticas e ladinas ao mesmo tempo. Olhou detidamente para sua mão
luminosa e percebeu o celular, entendendo então aquela viatura que vinha em
direção a sua casa. Empunhou o revolver calmamente e o mandou descer da mala,
enquanto tomava o celular e observava em seu visor o número 190. Olhou para o
urso e entendeu seu erro. A bala, havia trespassado o ombro sem atingir nenhum
órgão e o cretino provavelmente havia se fingido de morto, como o fazem quase
todos os insetos. Postou-o na frente do carro, olhou novamente pra ela, sorriu
um sorriso constrangido e puxou o gatilho. Uma, duas, três, quatro, cinco
vezes, esvaziando o tambor e garantindo que dessa vez, o urso tinha tido o seu
merecido. Deixou cair o revolver aos seus pés e voltou lentamente para o carro,
cabisbaixo e de ombros caídos.
Com as duas mãos no volante, se
perdeu em pensamentos sobre o que havia dado errado. Seria a falta de filhos,
por ele não ter podido comprar um sítio, ou alguma outra coisa que ele não
conseguiu suprir? Seria por ele trabalhar tanto, ou por naquele dia não ter
passado tanto tempo na labuta e ter chegado em casa mais cedo? Olhou novamente
para o banco do passageiro e a viu ali, parada, horrorizada, com lágrimas
rolando dos olhos vermelhos e com um grito contido pela mordaça, pronto para
explodir. Olhou pra ela, sorriu suavemente e disse:
-Parece que ambos somos capazes de
coisas horríveis aos olhos do outro amor. Mas não se preocupe, somos só nos
dois de novo e tenho certeza que conseguiremos nos entender com o tempo. Nosso
amor é eterno, como são todos os verdadeiros amores. Iniciamos hoje uma nova fase
na nossa relação e não quero que coisas mundanas fiquem entre nós. Vê? Nosso
futuro nos espera. Por que não sorri? Você sabe que eu amo o seu sorriso.
Olhou pra frente e a viu ali.
Aquela que uniria o casal novamente, aquela que já o esperava quando lá chegou
e que talvez já esperasse desde o dia da primeira visita a represa. Aquela que
espera pacientemente, porque sabe que tudo no homem é passageiro, exceto o amor
pois este é eterno. Virando-se novamente para o banco ao lado, tirou a mordaça
de sua amada e a beijou docemente, sentindo o sabor de suas lágrimas enquanto
percebia com o canto dos olhos, as luzes da viatura que se aproximava,
refletidas no retrovisor. Respirou fundo, e acelerou com força, correndo para o
abraço quente e acolhedor da morte, unindo nela, o que a vida não conseguiria
separar. Seu amor, eterno amor.
Autor: Valter Ramos