Não é de hoje que o regime de segregação
racial conhecido como apartheid vem conquistando lamentável lugar de destaque
nas páginas do cada vez mais volumoso livro de calúnias da humanidade. Neste
mês de março de 1960, porém, um novo capítulo nessa história de intolerância,
discriminação e barbárie foi inscrita com o sangue dos negros pelas autoridades
brancas da África do Sul. No último dia 21, um protesto pacífico contra as leis
do passe, incentivado pelas lideranças do Congresso Pan-Africanista e reprimido
com violência pela polícia em todo o país, causou uma verdadeira carnificina em
Sharpeville, a 45 quilômetros de Johanesburgo. Em uma ação desproporcional e
covarde, as centenas de manifestantes que se aglomeravam em frente à delegacia
de polícia local tornaram-se alvos vivos dos soldados do comando sul-africano.
Revólveres, rifles e submetralhadoras, sem aviso prévio ou justificativa,
cuspiram fogo contra a multidão, assassinando 69 pessoas e ferindo quase 200 –
a maioria baleada pelas costas, em uma tentativa desesperada de fuga.
A inescusável execução em massa provocou
náusea na comunidade internacional e despertou a ira das lideranças negras na
África do Sul – o temor de uma guerra civil já toma conta de membros do alto
escalão do primeiro-ministro africâner Hendrik Verwoerd. Uma semana depois do
chamado “Massacre de Sharpeville”, um dia nacional de luto, 28 de março, foi
convocado pelos chefes negros. Os funerais das vítimas seriam acompanhados por
um boicote do trabalho e novas manifestações contra o passe. Ainda que os
líderes do movimento seguissem pregando a não-violência, a tensão latente
acabou por registrar uma série de tumultos e pancadarias em diferentes pontos
de Johanesburgo, Worcestor e Cidade do Cabo. Em reação direta aos eventos, já
se noticia uma corrida de cidadãos sul-africanos a consulados estrangeiros, em
busca de vistos de emigração, bem como um aumento espantoso na venda de
armamento aos brancos.
Na véspera dos funerais, para evitar
novos conflitos, o governo da África do Sul havia anunciado a suspensão da
obrigatoriedade do porte do passe pelos negros. Esperançoso com o que parecia
um primeiro ato de conciliação por parte da administração de Verwoerd, o planeta
foi logo devolvido à realidade obtusa do apartheid com a declaração oficial de
estado de emergência em 30 de março. Sob tal auspício, as autoridades
sul-africanas voltaram à carga com prisões em massa – o número, ainda não
oficial, é de 18.000 detidos, incluindo o líder do Congresso Pan-Africanista,
Robert Sobukwe, e a quase totalidade dos cabeças do movimento negro –, além da
criminalização das entidades políticas dos nativos. Uma passada de olhos pela
história revela que, atuando na clandestinidade, as oposições não demoram a
deixar a resistência pacífica em favor da armada. No ambiente incendiário em
que se encontra a África do Sul, parece questão de tempo.
Caderneta da infâmia - Na origem do protesto que geraria o
extermínio na township (área urbana reservada aos negros) de
Sharpeville está um dos maiores instrumentos de controle e segregação racial a
serviço do governo: as leis do passe. Obrigados a carregar as infames
cadernetas – que contêm foto, dados pessoais, número de série, registro profissional,
pagamento de impostos e ficha criminal – e a mostrá-las às autoridades sempre
que solicitadas, os negros não apenas têm sua liberdade de movimento cerceada,
mas também são vítimas, a cada abordagem, de atos de humilhação. Caso o
indivíduo não apresente o passe, é sumariamente detido. Existente desde a época
dos escravos, em 1700, o conceito e a oficialização do passe – e, por tabela,
sua oposição – ganhou força com a instauração do regime do apartheid, no ano de
em 1948, com a chegada ao poder do Partido Nacional. Na última década, foram
várias as manifestações contrárias às leis, notadamente a marcha das mulheres
de agosto de 1956. Nenhuma delas, contudo, surtiu grande efeito prático.
No início de março, o Congresso Nacional
Africano (CNA) programou, para o último dia do mês, uma nova manifestação
anti-passe. Antecipando-se a ela, os membros do Congresso Pan-Africanista (CPA)
– fundado no ano passado por dissidentes do CNA –, liderados pelo educador
metodista Robert Sobukwe, marcaram seu protesto sobre o mesmo tema para o dia
21, dez dias antes, portanto, da movimentação da associação rival. A campanha,
de acordo com a orientação de Sobukwe, deveria ser totalmente pacífica. Todos
os africanos deveriam deixar seus passes em casa e, desarmados, comparecer às
delegacias de polícia, entregando-se aos oficiais para serem presos. Os líderes
do CPA acreditavam que a detenção massiva de negros resultaria numa pane do
sistema: não apenas as prisões ficariam superlotadas, mas também a economia
seria bruscamente afetada, com boa parte da força de trabalho no cárcere.
No dia 21 de março, a adesão à chamada
de Sobukwe foi maciça, tendo sido observada com sucesso em diversas townships pelo país. Em Sharpeville, uma
multidão calculada entre 5.000 e 7.000 pessoas colocou-se defronte ao distrito
policial, para aflição do efetivo local de vinte soldados. O pedido de reforços
foi imediatamente atendido, com 130 homens, escoltados por quatro tanques
Saracen, adentrando o recinto – todo cercado por arame farpado. Vôos rasantes
de jatos Sabre e monomotores Harvard buscaram, sem sucesso, dispersar a
multidão. Por volta das 13 horas, de acordo com relatos de testemunhas, a
tentativa da polícia de deter um negro causou uma pequena confusão perto do
portão de entrada da delegacia, e algumas pedras foram atiradas contra os
tanques da polícia. O comandante da polícia, G. D. Pienaar, teria então
ordenado seus homens a carregar os revólveres, rifles e submetralhadoras. E
então, sem que a multidão tenha recebido qualquer aviso ou determinação para
recuar, os policiais começam a disparar suas armas. Completamente
desprevenidos, os negros bateram em retirada, desesperados. Os projéteis
seguiam em sua direção, alvejando os retardatários pelas costas. Pouco mais de
dois minutos depois, Sharpeville encerrava seu cenário de apocalipse. Dúzias e
dúzias de mortos e feridos jaziam nas cercanias.
O comandante Pienaar, com doentia
tranqüilidade, explicou a ação. “Meu carro foi atingido por uma pedra. Se eles
fazem isso, precisam aprender a lição da forma mais dura.” O primeiro-ministro
Verwoerd também forneceu seu aval à matança, dizendo que os manifestantes em
Sharpeville “atiraram primeiro” – apesar de não terem sido encontradas armas
com os manifestantes ou deixadas por eles. Presente no local, o britânico Ian
Berry, fotógrafo da revista Drum, rebateu as alegações oficiais de
legítima defesa. “Os policiais não estavam em perigo. Presumo que eles tenham
atirado com o intuito de dar à multidão, e a toda África negra, por
conseqüência, uma terrível lição.”
Comparação lisonjeira - Do resto da África ao Vaticano, o mundo
civilizado repudiou com igual fervor não apenas a chacina, mas também a
naturalidade com que o governo da África do Sul a encarou. William Tubman,
presidente da Libéria, definiu o massacre de Sharpeville como “a mais vil,
cruel e inadmissível ação na história humana.” O departamento de Estado
americano classificou a violência dos policiais de Verwoed como “deplorável”, e
lamentou as perdas trágicas da comunidade africana. O jornal L’Osservatore Romano, órgão de imprensa oficial do Vaticano,
questionou o motivo pelo qual a polícia da África do Sul não empregou “técnicas
modernas de dispersão como mangueiras de água e gás lacrimogêneo, que são
usados em todos os países civilizados, ao invés de massacrar homens, mulheres e
crianças indiscriminadamente”.
Pouco antes do fechamento desta edição,
no dia 1º de abril, uma reunião extraordinária do Conselho de Segurança da
Organização das Nações Unidas abordou o assunto e deu origem à resolução 134 do
órgão. O documento responsabiliza o governo da África do Sul pela ação e urge
que a administração abandone a política do apartheid, que coloca em perigo a
paz e a segurança internacionais. O primeiro-ministro Verwoerd, porém, outra
vez deu de ombros. “As críticas vêm apenas dos agitadores do mundo político. As
pessoas de bem estão em sua maioria quietas.” Se o chefe de estado não
estivesse tão absorto em sua insanidade, veria que não é bem assim – os apupos
desta vez vêm também do próprio quintal. A imprensa branca africâner, sempre
nacionalista, já vinha pedindo moderação ao líder – não à toa, o Johannesburg Vaderland já sugeria, no dia anterior ao
massacre, “um sistema mais simples e menos doloroso de passes”.
O Johannesburg
Star, de língua inglesa,
atacou Verwoerd após o derramamento de sangue. “É patética a fé do governo em
metralhadoras para resolver problemas humanos básicos.” O bispo anglicano de
Johanesburgo apelou “a todos aqueles que têm sentimentos humanos na África do
Sul para combater as táticas policiais.” No entanto, o mais simbólico,
contundente e representativo protesto contra a administração federal veio por
cortesia de uma manifestação de mais de 500 estudantes brancos da Universidade
de Natal, em Durban. Os jovens mandaram confeccionar cartazes nos quais, em
menos de 30 caracteres e com uma lapidar frase sem verbo, resumiam a indignação
de um planeta: “Hitler 1939, Verwoerd 1960”. Nada mais precisa ser dito. Mas
algo precisa ser feito para que se evite, duas décadas depois, a repetição de
tal aberração.
Fonte: Veja
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