Os indígenas ixis tiveram que esperar mais de 30 anos para poder
testemunhar sobre o capítulo mais doloroso de sua história diante de um
tribunal de justiça na Guatemala. Mas o tempo não diminuiu o horror do que
tinham para contar.
Durante
dez dias, no julgamento que terminou com a condenação por genocídio do
ex-presidente Efraín Ríos Montt, uma centena de testemunhos ─ principalmente de
mulheres ─ deu conta da violência exercida pelo Estado contra o povo maia entre
março de 1982 e agosto de 1983.
Ríos
Montt foi condenado a 80 anos de prisão, 50 por genocídio e 30 por crimes
contra a humanidade cometidos durante os 15 meses que governou a Guatemala.
Os juízes
consideraram que Montt tinha conhecimento de que as Forças Armadas
guatemaltecas "utilizaram a fome como arma militar" para destruir os
ixis durante a guerra civil do país, que durou 36 anos. É a primeira condenação
de um ex-chefe de Estado por violações de direitos humanos cometidas no
período.
Montt durante o julgamento |
De acordo
com o jornalista El Salvador Carlos Dada ─ que escreveu sobre o julgamento para
o portal e notícias da América central El Faro ─ os
relatos foram cheios de "meninas apunhaladas no pescoço, bebês assassinados
por soldados que esmagaram suas cabeças ou atravessaram seus corpos com
baionetas, famílias inteiras amarradas em casas às quais os soldados atearam
fogo".
Os
depoimentos são parte de uma história que a Guatemala e o mundo já conheciam,
mas sobre a qual haviam deixado de falar.
RACISMO
Relatórios
como o projeto para a Recuperação da Memória História (REMHI) e a Comissão para
o Esclarecimento Histórico das Nações Unidas (CEH) já haviam falado sobre a
violência contra os ixis - um dos 22 povos maias que em seu conjunto conformam
aproximadamente metade da população guatemalteca.
Ambos os
relatórios, publicados pouco depois da assinatura dos acordos de paz que
puseram fim à guerra civil, documentaram exaustivamente as atrocidades
cometidas entre 1960 e 1996.
Mas 1.771
ixis assassinados durante o governo de Montt foram apenas uma gota d'água no
mar de violência na Guatemala, que deixou 200 mil mortos e 45 mil
desaparecidos.
A maioria
deles eram indígenas caracterizados pelos governos ditatoriais como
colaboradores da guerrilha de esquerda que estaria tentando tomar o controle do
país.
Nos
primeiros anos da paz, tentar lançar luz sobre esse período da história da
Guatemala poderia facilmente resultar em uma sentença de morte, como evidencia
o assassinato do diretor do REMHI, monsenhor Juan José Gerardi, dois dias
depois da publicação do relatório Guatemala: Nunca mais.
"Acho
que o Estado e os meios de comunicação, que foram calados e intimidados, nunca
deram cobertura real ao que aconteceu no nosso país", disse à BBC Mundo
Rosalina Tuyuc, fundadora da Coordenadoria Nacional de Viúvas da Guatemala
(CONAVIGUA)
Ixis durante o julgamento de Montt |
"Então
a verdade da maioria das comunidades que foram afetadas ficou somente em seus
corações e cabeças. E foram muito poucos os que as acompanharam em sua busca
por justiça."
Para
Tuyuc, o fato de que a imensa maioria das vítimas ─ 83%, segundo a ONU ─ eram
indígenas também ajuda a compreender que a tragédia do povo maia nunca tenha
sido objeto de um verdadeiro debate nacional.
"É
parte do racismo estrutural, do racismo histórico e do racismo ideológico, que
leva a minimizar o ocorrido, a querer desconhecer e ocultar e até a dizer: por
que os índios não são exterminados, se só representam um fardo para o
Estado?", disse Tuyuc, que pertence ao povo maia Kaqchikel.
O
presidente da comissão contra a Discriminação e o Racismo contra os Povos
Indígenas na Guatemala, Jacobo Bolvito, também acredita que o racismo está por
trás do silêncio sobre o genocídio e também da situação dos nativos no país.
"Hoje
em dia os efeitos do racismo podem ser vistos no fato de que os indicadores de
desenvolvimento humano entre os povos indígenas são realmente
lamentáveis."
CAMINHO A PERCORRER
De acordo
com dados do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, enquanto
aproximadamente sete de cada dez indígenas guatemaltecos vivem em situação de
pobreza, a porcentagem de mestiços pobres é de apenas 36%.
A
exclusão econômica também tem sua expressão política, já que no Parlamento da
Guatemala há somente 21 deputados indígenas de um total de 158.
Os
guatemaltecas concordam que a situação melhorou na medida em que acordos de paz
foram implementados, mas reconhecem que há um longo caminho a percorrer.
"Todos
os espaços que se abriram até agora são também herança ou resultado dos 200 mil
mortos em nosso país. Por isso é preciso lutar para manter esses espaços e
denunciar a todos os que não querem reconhecer a outra Guatemala. Não podemos
nos calar", diz Rosalina Tuyuc.
Fonte: BBC
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