Múmias misteriosas vêm
sendo achadas nas turfeiras do norte da Europa. Os restos mortais lançam luz
sobre a Idade de Ferro.
O homem
– ou o que restou dele – emergiu do relvado irlandês num dia de inverno de 2003
com o cabelo ainda penteado como estivera nos últimos momentos de vida: cortado
rente na nuca e com um topete de 20 centímetros arrebitado para trás e fixado
por resina de pinho. E esse foi só o começo do mistério.
Aprisionado
numa peneira industrial de uma fábrica de processamento de turfa, ele estava
nu, tinha a cabeça em abrupta torção para a esquerda, e faltavam-lhe as pernas
e os antebraços, arrancados pela máquina que o desencavara de um pântano na
cidade de Clonycavan. Na cabeça e no tronco havia marcas de violência
deliberada.Antes de o atirarem ao lodaçal, quebraram seu nariz e seu crânio e
rasgaram-lhe o ventre. Enquanto ele jazia no pântano, o peso do musgo-do-brejo
encharcado amassou sua cabeça, partida, e as águas escuras curtiram sua pele
como couro e tingiram seu cabelo de um vermelho alaranjado.
Chamaram
os arqueólogos, pois aquela não era uma vítima de assassinato comum: o Homem de
Clonycavan era um corpo do pântano, um testamento embalsamado pela natureza dos
misteriosos rituais praticados na Europa durante a Idade do Ferro, o período
compreendido entre alguns séculos antes e alguns séculos depois de Cristo.
Centenas dessas múmias inusitadas foram achadas nos charcos da Irlanda, Reino
Unido, Alemanha, Holanda e especialmente Dinamarca, preservadas pela ausência
de oxigênio e pelos compostos antimicrobianos do musgo-do-brejo.
Histórias
sobre os corpos do pântano vêm sendo fabricadas desde fins dos anos 1800, quando
se tornou notório que eram muito antigos. Eles inspiram fascínio e um anseio
por contato com um passado remoto, quando os brejais, agora drenados e
escavados para dar lucro, eram portais para outro mundo. Deuses habitavam os
pântanos, junto com almas banidas e atormentadas. Ali os povos da Idade do
Ferro talvez tenham sepultado os mais temidos ou abominados entre eles,
sacrificado entes queridos ou até mesmo os poderosos para alcançar graças dos
deuses.
Os
pesquisadores têm novos instrumentos, como tomografia computadorizada, imagens
tridimensionais e datação por radiocarbono, para ajudá- los a analisar os
corpos e os artefatos. Fora isso, há pouco em que se basear. Os europeus da
Idade do Ferro não deixaram registros escritos de suas crenças e seus costumes.Muitos
dos corpos sumiram, decompostos depois de ter sido novamente sepultados ou
abandonados. Alguns, em museus, sofreram com os esforços de restauração dos
ávidos conservadores e curadores. Outros são fantasmas: no ano passado, dois
estudiosos publicaram um artigo intitulado “Pessoas imaginárias” em uma revista
de arqueologia alemã. Concluíram, relutantemente, que Alfred Dieck, um
arqueólogo já falecido que dedicou a vida a catalogar corpos do pântano,
inventou muitos dos mais de 1,8 mil casos que registrou.
Não
surpreende que estudos seguissem rumos equivocados. Desesperados por relatos
históricos sobre as sociedades germânicas pré-letradas, os pesquisadores,
décadas atrás, recorreram aos escritos de Tácito, historiador romano do século
1. Mas este descreveu os costumes do outro lado do Reno baseado em relatos de
segunda e terceira mãos e com o intuito de envergonhar os romanos pelo
comportamento que ele considerava decadente. Tácito afirmou, entre elogios, que
os germânicos matavam os homossexuais e os covardes e os fincavam com estacas
nos lodaçais.
Daí vem
a idéia de que muitos dos corpos teriam sido de pessoas execradas, punidas com
tortura e execução em vez de ser cremadas, como se costumava fazer na Idade do
Ferro. Pesquisadores aventaram que a Moça de Windeby, descoberta no norte da
Alemanha em 1952, fora uma adúltera que tivera a cabeça raspada de um modo
descrito por Tácito. Em seguida, teria sido vendada e jogada no pântano. Um
corpo nas proximidades foi identificado como o de seu amante.
Mas
essa teoria ruiu depois que Heather Gill-Robinson, da Universidade de Dakota do
Norte, examinou o corpo e realizou testes de DNA: a Moça de Windeby
provavelmente era um rapaz. A datação por radiocarbono, feita por outros
cientistas, revelou que o suposto amante vivera três séculos antes. A “moça”de
Windeby pode ter perdido os cabelos nas pás descuidadas dos arqueólogos que
escavaram o corpo. E interrupções no crescimento ósseo indicaram que o rapaz
era subnutrido, debilitado e talvez tenha morrido de causas naturais. O
arqueólogo Michael Gebühr, da Universidade de Hamburgo, acredita que o corpo
foi vendado antes do sepultamento para proteger os vivos do olhar do morto.
Na
Dinamarca, uma equipe de investigadores, entre eles Niels Lynnerup, reexaminou
os corpos do pântano de seu país e constatou que, na verdade, alguns dos danos
que haviam sido interpretados como tortura ou mutilação ocorreram séculos
depois da morte. O Homem de Grauballe, descoberto em um brejal a noroeste de
Copenhague em 1952, é um dos corpos mais bem preservados. As radiografias
anteriores eram difíceis de interpretar, pois os ossos, desmineralizados pelas
águas ácidas do pântano, pareciam de vidro. A tomografia mostrou que o crânio
do Homem de Grauballe foi fraturado pela pressão do pântano, agravada quando um
menino de tamancos pisou sem querer no corpo durante a escavação. A perna
quebrada também pode ter sido obra do pântano, e não, como alguns estudiosos
pensavam, prova de uma pancada violenta para forçar o homem a ajoelhar-se durante
a execução.
Homem de Oldcroghan |
Agora,
Lynnerup, a arqueóloga Pauline Asingh e outros cientistas interpretam a morte
do Homem de Grauballe, 2,3 mil anos atrás, como um sacrifício oferecido a uma
das deusas da fertilidade que os povos celtas e germânicos acreditavam deter o
poder sobre a vida e a morte. Teria ocorrido num inverno após uma colheita
ruim. As pessoas estavam famintas, só dispondo de ervas silvestres e restolhos
de cereais para comer. Acreditavam que um dos seus tinha de morrer para que os
demais pudessem sobreviver.
O Homem
de Grauballe, sujeito robusto de 34 anos, soube de seu destino com alguns dias
de antecedência: pêlos brotando em sua mandíbula indicam que ele parou de se
barbear. E então chegou a terrível hora em que os aldeões o levaram a um
pântano próximo. Avançaram por entre os buracos cavados para extrair turfa e
limonita, o minério com que os povos da Idade do Ferro forjavam ferramentas e
armas.Na borda de um fosso, um deles puxou para trás a cabeça do Homem de
Grauballe e cortou sua garganta de uma orelha a outra. O executor empurrou o
moribundo no fosso.
Eammon
Kelly, encarregado de antiguidades do Museu Nacional da Irlanda, acha que cenas
semelhantes de sacrifícios podem ter ocorrido em reinos antigos de sua terra.
Três meses depois de o Homem de Clonycavan ter vindo à luz, outro corpo antigo
caiu da pá de uma retroescavadeira em um pântano a 40 quilômetros dali. O homem
tinha quase 1,90 metro de altura, mas só restavam o tronco e os braços. Nestes,
ferimentos indicavam que ele tentara aparar facadas antes de ser atingido no
coração.
Seu
corpo foi depois mutilado de um modo estranho: os mamilos parecem ter sido
cortados, os braços, perfurados, e pelos furos foram passadas pequenas coroas
de ramos de aveleira entrelaçados. Em torno de um bíceps havia uma braçadeira
de couro trançado com um amuleto de bronze gravado com desenhos celtas. Esses
adereços, assim como o fixador de cabelo do Homem de Clonycavan, feito com uma
resina que os arqueólogos concluíram ter sido importada do sul da França, eram
dispendiosas marcas de status.
Outra
pista ligou esse novo corpo, chamado de Homem de Oldcroghan, a cerca de 40
outros corpos do pântano na Irlanda: todos foram sepultados em fronteiras de
antigos reinos irlandeses. Segundo Kelly, tal localização, juntamente com os
ornamentos caros, sugere histórias de sacrifícios da realeza.No passado remoto,
os reis irlandeses, num ato simbólico, desposavam a deusa da fertilidade, e a
fome coletiva significava que a deusa se voltara contra o rei e tinha de ser
apaziguada. Para Kelly, os corpos do pântano representavam a mais esplêndida
oferenda: reféns de alta posição social detidos para impor obediência a
senhores rebeldes, aspirantes ao trono ou mesmo reis decaídos. Cada ferimento
que sofreram honrava um aspecto da deusa – fertilidade, soberania e guerra. “É
violência controlada”, diz Kelly. “Estão dando à deusa o que lhe é devido.”
O Homem
de Oldcroghan comia carne, conforme mostrou a análise dos cabelos e das unhas.
Mas os resíduos nas vísceras indicaram que sua última refeição foi de cereais
com leite magro, emblemas da fertilidade condizentes com um sacrifício à
deusa.Após a morte, os mamilos talvez tenham sido cortados para marcá-lo como
um governante rejeitado – na Irlanda antiga, os súditos demonstravam submissão
sugando os mamilos do soberano. Depois o corpo foi esquartejado e semeado ao
longo da fronteira do reino com as coroas entrançadas nos braços como uma
mágica protetora para guardar o território.
Homem de Oldcroghan |
A
ciência não pode provar esse roteiro hipotético de Kelly. Outros pesquisadores
dizem, por exemplo, que o pântano, e não os executores, talvez tenha sido o
responsável pelo dano aos mamilos do Homem de Oldcroghan; seu corpo encharcado
estava frágil como papelão molhado. E, mesmo que Kelly esteja certo ao supor
que os corpos do pântano na Irlanda eram da realeza, os povos do continente
europeu tinham uma cultura diferente, germânica, e não celta, chefes em vez de
reis e, quase certamente, outros ritos de sacrifício.
Niels
Lynnerup, que usou o que a ciência tem de mais poderoso para penetrar nos
segredos do Homem de Grauballe e que pode ver em seu computador as imagens
tridimensionais dos ossos, músculos e tendões desses corpos, não se incomoda
com os mistérios renitentes.“Coisas estranhas acontecem no pântano. Sempre
haverá alguma ambiguidade.” Ele sorri.“Até gosto da ideia de haver mistérios
que nunca desvendaremos.”
Fonte: National Geographic Brasil